5.4.10

A Semana Santa e a herança de Oscar Romero

22.03.05 - BRASIL
 
Marcelo Barros *

Adital -
 
Certas celebrações religiosas me recordam o que uma de minhas irmãs contou. Um dia, o seu filho de três anos lhe chama para dar um presente. Comovida, a mãe vê o menino estender a mão que mantinha atrás das costas com o tal presente. Surpresa, a mãe vê que se trata de uma rã, tirada do esgoto e tentando escapar. Como mãe, ela tem o cuidado de não rejeitar o presente de amor que o filho lhe oferece e, ao mesmo tempo, descobrir a forma de se livrar da rã que ele insiste em lhe dar. 

Deus deve sentir-se assim com certas celebrações e presentes que os crentes lhe oferecem. Não quer contrariá-los e, ao mesmo tempo, não sabe o que fazer com "as rãs" de nossos sacrifícios, velas, incensos e louvações. Os profetas da Bíblia disseram isso, às vezes, de forma muito dura. Jesus denunciou: "Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim". "Deus é espírito e verdade e seus verdadeiros adoradores o adoram em espírito e verdade". "Quero a misericórdia e não o sacrifício, a relação humana e não o culto (holocausto)"

 

No Ocidente, cada ano, a Semana Santa é comemorada como o centro das celebrações da fé cristã, porém muita gente se liga apenas aos aspectos externos destas comemorações. Preocupam-se justamente com costumes tradicionais como não comer carne e com ritos populares como procissões e encenações da paixão. São costumes que têm forte sentido cultural e alguns se enraízam em crenças mais antigas que o cristianismo. Devem ser respeitados. Entretanto, em uma sociedade leiga como a nossa, o risco é que deles se guarde apenas a casca e não o conteúdo mais profundo que os motivou. Para quem tem fé, a proposta é lembrar o que aconteceu com Jesus para seguir hoje o seu caminho e trabalhar pela paz e solidariedade à qual ele consagrou a vida. A morte de Jesus na cruz não foi um rito religioso e sim um assassinato político. Aceitamos recordá-la cada ano para que esta memória nos ajude a viver de forma mais solidária.

 

Neste 2005 a quinta-feira santa cai na data em que o mundo recorda os 25 anos da morte de Dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, assassinado por militares do exército, quando celebrava a eucaristia no dia 24 de março de 1980. Romero sabia que estava marcado para morrer. Em apenas três anos como arcebispo, sentiu-se obrigado a mudar sua forma de ser para servir aos mais pobres. Antes era um bispo conservador que não gostava de ver a Igreja envolvida em coisas sociais.

 

Ele confessava ter mudado de pensamento e de forma de ser aos 59 anos. O que não é fácil para ninguém. Muitos se perguntaram sobre o que levou Romero a mudar tão rápido e profundamente. Sobre isso o seu amigo e teólogo Jon Sobriño escreveu: "Ainda que possa parecer extremamente simples ou até estranho dizer isso, Romero foi um homem que acreditou em Deus"(1). Em um mundo no qual o nome de Deus aparece nas notas de dólar, nas entrevistas de Bush e nas paredes de qualquer quartel ou casa militar, para Romero, crer e ser testemunha de Deus significou, antes de tudo, amar e defender a vida onde ela estivesse ameaçada. Ele trabalhou por estruturas justas que tornassem possível a vida para todos os salvadorenhos, lavradores, operários e moradores de favelas. Dizia que a extrema pobreza dos lavradores tocava o coração de Deus. Na negação do ser humano, via a negação de Deus. A miséria e a injustiça que viu em San Salvador, a expectativa que o povo punha em sua pessoa e o fato de ver morrerem diversos auxiliares seus por defenderem a vida dos lavradores, o levou a se envolver cada vez mais na vida do povo, na defesa dos pequenos e na luta pela justiça.

 

Para Romero, celebrar a Páscoa de Jesus era, em primeiro lugar, posicionar-se como Jesus se posicionou. Em seu diário confessou que tinha muito medo de morrer, mas não podia fugir da missão de defender a vida dos pobres ameaçados e agredidos. O único cuidado que tomou foi não aceitar caronas de nenhum amigo e dispensar o seu motorista pessoal. Não queria arriscar a vida de mais ninguém além de si mesmo. Foi baleado quando celebrava a missa e ia oferecer a Deus o pão e o vinho, símbolos de nossa própria doação aos outros. Mais tarde se soube que, enquanto o corpo era velado na catedral e o povo pobre fazia fila para chorar junto do seu pastor, moças de um colégio católico festejavam com cervejas e danças a morte do arcebispo, a quem elas consideravam comunista e subversivo.

 

Na América Latina, desde a década de 80, a pobreza triplicou, as injustiças sociais e a violência aumentaram muito. Quase a cada dia, continuam sendo assassinados lavradores, índios e outras pessoas pobres. As Igrejas continuam celebrando seus cultos e o povo repetindo seus costumes religiosos tradicionais. A Campanha da Fraternidade Ecumênica pela Paz e Solidariedade nos recorda: a herança de Romero para nós é ligar a celebração desta Páscoa com o compromisso de trabalharmos para que o mundo e a sociedade que nos envolve sejam mais justas e fraternas. Celebrar a Páscoa de Jesus Cristo não é apenas repetir ritos já conhecidos. É dar um passo a mais para crescermos em solidariedade e vivermos a fé como serviço à vida, à justiça e à paz. Concretamente, na América Latina, isso significou para Romero e significa para nós, assumir a causa de todas as pessoas oprimidas e participarmos da caminhada de libertação. Como dizia Romero parafraseando Irineu de Lyon: "A glória de Deus é que o pobre possa ser livre".

 

(1) Jon Sobrino, Para Romero, la injusticia es el verdadero pecado, in CISA PROCESO, 18- 04- 1980, p. 2.

 


* Monge beneditino, teólogo
 

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